Desde que
a crise começou tenho recebido vários mensagens e comentários em relaçao aos
salários e regalias dos políticos ou administradores de cargos públicos em Portugal. Concordo com a perspectiva comum de que Portugal tem um
número de cargos políticos (sob a forma de deputados, vereadores, ou de juntas
de freguesia) algo elevado em proporçao da sua populaçao relativa a outros
países. Também me parece exagerado o mecanismo de pensoes antecipadas para
vários cargos políticos portugueses, uma vez que em varios países os
representantes políticos participam no mesmo esquema de pensoes e saúde que os
outros funcionários públicos.
Mesmo assim, o gasto em salários, pensoes, e diversas regalias dos
políticos e administradores públicos é uma proporçao pequena do orçamento de
Estado. Estes gastos sao mais consequencia do que causa do nosso
sub-desenvolvimento. Em Portugal existe pressao junto dos Governos para que
hajam muitos cargos públicos, uma vez que estes sao vistos como bem remunerados.
Em países donde a iniciativa privada é bem remunerada, esta pressao política
desaparece.
Na verdade discordo bastante duma visao simplista em que os políticos sao
vistos como o problema e nao parte da soluçao. Um povo descrente da existencia
de representantes honestos e com valor acabará por cair numa ditadura
oligarquica ou na anarquia. Sou mais a favor de mudanças que melhorem o
processo de decisoes e prestigiem a classe politica. Favoreço uma reduçao do
número de deputados porque países com um menor número de deputados em proporçao
do eleitorado conhecem melhor os seus representantes e atribuem-lhes mais
prestigio. Ademais disso, as modernas tecnologias de transporte e informaçao
permitem a cada deputado conhecer melhor o seu eleitorado e os problemas de zonas
geográficas mais extensas.
Julgo também que a visao popular dos governantes sacrificados e dedicados,
trabalhando com “poucoxinho” e fazendo
imenso, é uma utopia impossivel. Na prática o trabalho dum governante requer vários
anos de trabalho, leitura de documentos e pastas aborrecidas, reunioes
intermináveis com outros representantes e grupos de interesse, busca de
compromissos, e depois escrever e re-escrever todas as soluçoes encontradas com
a linguagem legal adequada. Para mim afigura-se claramente como um trabalho que
requer um grupo de profissionais remunerados e nao apenas um par de cidadaos
com boas intençoes, tal como no imaginário popular. Ademais, a carreira
política envolve certos riscos, como o de nao ser re-eleito. Muitos de nós
preocupamos-nos com a possibilidade de termos empregos precários ou que nao
duram toda a vida. Bem, o facto da política requerer um grande investimento
inicial em campanha eleitoral é um custo enorme para empregos que duram só 4
anos e nao tem uma remuneraçao tao grande como isso. Por isso, ao contrário da
utopia popular dos bons políticos que ganham pouco, nao consigo imaginar muita
gente qualificada gastando tempo e dinheiro em campanha eleitoral pela honra de
ganhar pouco durante quatro anos.
Para verificar o irrealismo da utopia dos bons políticos mal remunerados
pensemos em duas classes sociais com tradiçao, honra e prestigio: o exército e
a igreja.
Durante milénios de história a vida militar foi a profissao de excelencia
das elites. Nas sociedades feudais, os militares beneficiavam de terras e
honras, ao passo que o Tesoureiro do Rei ou Ministro das Finanças tinha o mero
título de Mordomo. A própria palavra Ministro tem a sua origem em “servo” e
denota que os Reis nao pensavam lá grande coisa dos Ministros ou Secretários de
Estado. Os Ministros eram meros burocratas letrados. Mesmo quando o exército se
alargou ao povo comum, a imagem heróica dos militares persistiu e seguimos
dedicando colunas e monumentos aos nossos defensores. Todavia, em quase todas
as sociedades modernas o exército é hoje profissional e bem remunerado (relativamente
aos outros funcionários públicos). Porque motivo nao conseguimos convencer os
nossos heróis a trabalhar por “poucoxinho”? Será que é pelo risco da vida
militar? Aqui eu honestamente discordo, uma vez que os militares actuais tem um
risco de morte bem reduzido relativamente às geraçoes anteriores mal pagas. Sociedades
antigas – como as pólis gregas e República de Roma – nunca tiveram problemas em
convencer dezenas de milhares de cidadaos a arriscar as suas vidas durante
vários meses a troco de nada, desde que isso nao perturbasse as colheitas
agrícolas. Mesmo em tempos modernos, os países europeus conseguiram recrutar imensos
voluntários jovens no início da Primeira Guerra. Mas esses jovens pensavam que
a guerra duraria uns meses e estariam com pais e noivas antes do Natal! O
motivo porque remuneramos bem os militares hoje nao é pelo risco de morte que
enfrentam, mas sim porque é um trabalho que requer profissionalismo e anos de
dedicaçao. Actos heróicos durante um mes saem baratos, mas anos de vida
profissional saem mais caro!
Outra classe social de prestigio, os sacerdotes, teve mais sucesso em
recrutar pessoas a trabalhar por pouco. A Igreja Católica é talvez a maior
organizaçao nao-governamental do mundo e os seus principais membros dedicam
anos de estudo e uma vida de trabalho a troco de salários de subsistencia. Mas
será que a nossa classe política iria conseguir imitar o exemplo de esforço e
dedicaçao da Igreja Católica? Julgo que nao. Repare-se que apesar de tudo as
organizaçoes religiosas nao tem um excesso de candidatos. As igrejas tem sempre
adiado a idade de reforma dos sacerdotes actuais, devido à escassez de
candidatos novos. Os sacerdotes da Igreja ganham pouco, mas tem o emprego e
respeito das suas paróquias garantidos para a vida, um beneficio que políticos
nao tem.
Por isso, ainda que os cargos políticos sejam prestigiados
será que só isso compensa adequadamente anos de esforço? Julgo que
nao. A prova disso é que as pessoas que enviam emails dizendo que deveriamos
fazer uma petiçao para acabar com as regalias dos políticos nem sequer se dao
ao trabalho de fazer uma petiçao formal ou lista eleitoral para que votemos
nelas. Se essas pessoas honestas e virtuosas nao colocam alguns meses de
trabalho para ser eleitas e acabar com as regalias dos políticos, entao como vou
acreditar que colocariam anos mal pagos ao serviço do país?
Os riscos duma indignaçao injustificada contra as elites políticas em
momentos de crise sao reais e julgo que os Portugueses estariam melhor em
evitar bodes expiatórios do tipo do “político que ganha bem às custas dos outros”.
O sentimento popular de castigo contra a elite política é por vezes
contraproducente. Um exemplo fascinante disto vem da democracia Ateniense
durante a Guerra do Peloponeso. Os Atenienses depressa se aperceberam que
políticos corruptos poderiam roubar fundos em proveito próprio. Por isso, todos
os Tesoureiros públicos poderiam ter as suas propriedades confiscadas se
condenados por corrupcao. Durante o decurso da Guerra, os 10 Tesoureiros
eleitos por Atenas foram condenados por corrupçao, sendo os réus executados e
as propriedades das suas famílias confiscadas. Mais tarde, a acusaçao foi
revelada como falsa, mas o mal já estava feito. Nos anos seguintes deixou de
haver candidatos crediveis para a importante posiçao de Tesoureiro de Atenas
(equivalente a um secretário de Estado hoje).
O pior veio mesmo já no final da Guerra do Peloponeso. Atenas sofreu
durante décadas de uma praga que dizimou quase um terço da sua populaçao, incluindo
o próprio Péricles. A peste em Atenas e uma derrota militar na Sicilia tinham
esvaziado Atenas de homens e de fundos. Os seus militares e marinheiros mais
experientes trabalhavam agora como mercenários ao serviço de Esparta. Apesar do
desespero duma situaçao sem homens e dinheiro, oito jovens líderes atenienses
(incluindo Péricles, filho do famoso Péricles) conseguiram uma vitória
extraordinária frente a Esparta em Arginusae no ano de 406 BC, devido a uma
tática naval inovadora. A vitória Ateniense foi tao clara que Esparta ofereceu
a Atenas um tratado de paz com poucas condiçoes. Todavia, no regresso a Atenas
os jovens vitoriosos foram recebidos como viloes e nao heróis. Era uma tradiçao
ateniense enterrar os mortos, mas uma tempestade terrível impediu os jovens
generais de recolher os corpos dos marinheiros perecidos na batalha. Assim, no
regresso estes foram acusados de “desrespeito pelos mortos” e executados no primeiro
dia de juízo. O resultado óbvio é que pessoas capacitadas deixaram de servir
Atenas. Esta era uma sociedade donde qualquer movimento popular poderia
executar políticos em momentos crispados em que se culpava as elites de corrupçao
ou eventuais derrotas.
Atenas perdeu assim a sua maior vantagem política, a capacidade de renovar
os seus líderes eleitos por novos. Tres anos depois de Argusinae, Atenas foi
ocupada por Esparta e submetida a uma ditadura de trinta. Foi o fim de um dos
regimes políticos mais brilhantes da Antiguidade. O declínio ateniense foi
persistente e em inicios do século 19 Atenas tinha só 4000 habitantes, bem
menos que os 250,000 dos tempos de Péricles.
Espero que actualmente as sociedades da Europa de Sul, incluindo Portugal,
sejam mais benévolas face às falhas dos seus políticos. A verdade é que por
vezes na ansiedade de querermos eliminar todos os políticos corruptos ou pouco
virtuosos podemos beneficiar ditadores e políticos bem piores que os actuais.
Carlos
Madeira
Economista do Banco Central do
Chile
O artigo reflecta meramente a
opiniao pessoal do seu autor.