Ontem - bom, na verdade, foi há uns minutos, mas os suficientes para que a data fosse outra - escrevi aqui sobre como os telejornais estão cheios de notícias ridículas. E não, já nem me refiro às reportagens cujo único objectivo parece ser triplicar a duração de um noticiário que podia perfeitamente durar 30 minutos. Mas, no meio do absurdo de um número de mortos que se reduziu, surge uma notícia sobre um número de mortos que ameaça aumentar.
Quando era pequenina e não me apetecia comer o resto da sopa (situação rara, devo frisar), os meus pais invocavam as crianças que, em África, morriam de fome - um argumento que muitos, suponho eu, também terão ouvido em circunstâncias idênticas. Eu contrapunha que a quantidade de sopa por mim ingerida não tinha repercussão sobre a nutrição infantil africana (na altura, ainda me era alheio o conceito de derivada). Continuo a achar que é um raciocínio sólido, mas fico consternada quando vejo uma criança somali de 1 ano que pesa 6 kg e está praticamente cega devido à falta de vitamina A e cuja mãe é, aparentemente, uma adolescente.
Isto leva-me a pensar que nos queixamos das agruras da crise de barriga cheia. Literalmente. É claro que também há fome em Portugal e muita miséria, mas convinhamos que não somos referência para meninos pequeninos com falta de apetite. Ver na televisão estas pessoas que só têm olhos, pele e ossos ou ouvir as histórias de uma amiga que viveu na Guiné e que contava que, nos regressos a Portugal, o que mais agradecia era os duches quentes porque a junção "água corrente" com "temperatura elevada" era coisa que ela não tinha em Bissau ajuda a relativizar um pouco as coisas.
Não me interpretem mal! Longe de mim estar a fazer mau benchmarking e a usar a miséria trágica dos outros para me sentir confortável no actual estado de coisas. Não me parece grande conquista ser rei porque se tem um olho numa terra de cegos. Apesar de todos os problemas conjunturais e estruturais, Portugal faz parte do lote de países desenvolvidos e é com eles que se deve comparar. Mais, deve comparar-se com os melhores de entre eles, ainda que o confronto não nos seja lisonjeiro. Mas, de repente, vem-me à memória a pirâmide de Maslow e vejo que o topo não está assim tão longe. Por outro lado, ocorre-me que, neste século XXI, o sector primário é capaz de recuperar algum do protagonismo que a revolução industrial lhe retirou. É que, possivelmente, a designação de primário não será casual.
5 comentários:
O problema não é o topo dos países desenvolvidos não estar longe de Portugal. O problema é que nos últimos anos (no mínimo 10) temos seguido uma trajectória de afastamento em relação ao topo. Tendência essa que se irá manter muito provavelmente na próxima década.
Ps: Quanto ao subdesenvolvimento do sector primário nos países pobres, tem muito a ver com as políticas proteccionistas para os agricultores dos países desenvolvidos.
Mas, fazendo o papel de "advogado do diabo", qual é a solução? Liberalizar o sector agricola mundial e terminar as PACs e apoios similares? Devemos constituir fundos de apoio aos países carenciados? Ou devemos criticar a FAO por incapacidade de resolver os problemas da fome e da escassez de alimentos em determinados mercados? Não se esqueçam ainda de que o problema da fome é transversal com a existência de refugiados ou com os conflitos armados e, nesse caso, devemos considerar outras variáveis na análise...
eu percebo quase tanto de agricultura como a Ministra. Mas um primeiro passo poderia ser acabar com os futuros (e consequente especulação) nos produtos agrícolas.
Eu percebo um pouco mais de agricultura do que de futuros. Mas parece-me que a politica de subsidios devia começar por ser revista. Sim, não conseguimos concorrer com mercados de exploração intensiva mas porque não apostamos em nichos de mercado onde temos vantagens comparativas? Algodão, Cereais, Kiwis, Olival, Agricultura Biológica, frutos secos...?
E de uma vez por todas, porque não eliminar de vez os subsidios para deixar de produzir?
Quanto aos futuros, compreendo e seria uma boa iniciativa mas, a não ser que acabem com esse produto de vez, não o conseguirão fazer apenas no sector primário.
Como assim não conseguimos concorrer com mercados de exploração intensiva?
Portugal tem grandes condições p.ex. para estufas de horto-frutícolas. Ou de flores. Os nichos (kiwi e frutos secos p.ex.) são interessantes, mas não mexem grande volume.
Agora, na agricultura, como em tudo em Portugal, é preciso é que as pessoas sejam unidas. E claro, quando nem sequer se consegue ser auto-suficiente em algo tão óbvio como o azeite ou batata, muito vai mal na agricultura portuguesa.
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