terça-feira, 23 de agosto de 2011

Lições de Merceeiro II – gerir uma cooperativa (eventualmente europeia)

Imaginemos o seguinte caso: um merceeiro faz parte de uma cooperativa de comerciantes que se uniram como forma de obter maior poder comercial junto dos fornecedores e de serem mais competitivos nas vendas aos seus clientes. Dentro dessa cooperativa, houve 3 comerciantes (G, I e P) que, devido à má gestão nas suas lojas, se endividaram em excesso e tiveram de pedir apoio financeiro de emergência. Apesar de esse apoio ser proveniente também dos seus parceiros de cooperativa, o que perspectivava um aval forte à manutenção da cooperativa, registaram-se declarações paradoxais:

O comerciante A e o comerciante F entenderam que seria preferível tomarem uma posição de grupo (se é que se pode chamar grupo a 2 entidades) e, beneficiando de terem posição dominante sobre os parceiros de cooperativa, tentaram impor as suas regras como condição para a manutenção da associação. Apesar de a cooperativa ter chefes, veio a comprovar-se que a opinião/ posição destes, pouco valor tem…
Compreende-se que A e F não queiram assumir os erros de gestão dos parceiros de cooperativa irresponsáveis. Ainda assim, deviam assumir a sua quota-parte de responsabilidade por não terem antecipado esse problema (provavelmente porque não lhes terá interessado, mas aqui já entramos nas “especulações merceeiras”…). E, já que se assumem como membros dominantes, deveriam dar indicações credíveis sobre as suas intenções quanto à manutenção da associação de comerciantes!

Esses 2 comerciantes foram, em tempos, os principais responsáveis pela criação dessa cooperativa. Tentaram nessa época apaziguar as guerras entre colegas do ramo e estabelecer uma nova ordem económica entre comerciantes e a sua relação com o espaço que os rodeia. Foram ainda estes comerciantes os pioneiros de haver trocas comerciais livres entre os parceiros de cooperativa, o que os levou a negociar os bens apenas em quilogramas de sal, dispensando todas as restantes unidades monetárias.

Como se pode imaginar, uma cooperativa não é uma instituição de gestão simples. Implica coordenar os interesses particulares de cada associado mas deve supor também a exigência no cumprimento de alguns requisitos. Há cooperativas onde é relativamente simples afastar os elementos faltosos e outras onde é difícil, moroso e de resultado incerto. Mas é sempre um processo com custos para a própria associação. Mesmo os parceiros dominantes podem ter custos elevados e difíceis de quantificar por não darem o aval firme à manutenção da cooperativa. É portanto um erro deixar os problemas evoluírem sem posições rápidas e de consenso dentro das cooperativas. As guerras internas que em tempos A e F tentaram amenizar podem passar a guerras externas que inviabilizem o futuro desta associação.

Lição de Merceeiro: Não perspectivar o futuro e não correr o risco da promoção da estabilidade (em tempo útil) pode ser uma estratégia em que o Equilíbrio de Nash conduza ao afastamento e inevitável descontrolo das partes, com prejuízos para todos…inclusive numa cooperativa! Da mesma forma, disfarçar ou não querer ver o problema só pode ter um resultado: o agravamento desse mesmo problema!

20 comentários:

Jose Lapalice disse...

Para mim torna-se mais fácil avaliar somente a situação do comerciante P. Este comerciante P, em dada altura, decidiu de livre vontade candidatar-se a pertencer à cooperativa onde os dois principais elementos fundadores foram os comerciantes A e F. Fruto da sua maior dimensão, é natural que A e F tenham mais peso nas decisões. Durante muitos anos, A e F enviaram para o P vastas somas de dinheiro, que como se veio a comprovar foi mal usado. Ao invés de P usar esse dinheiro para tornar o seu negócio mais competitivo e eficiente, optou por escolhas mais pessoais para investir (carros, casas de férias, etc, etc). Passados alguns anos, houve uma grande decisão que permitiu entre outras coisas diminuir o custo de financiamento para todos os comerciantes. De novo, P escolheu continuar a estoirar dinheiro ao invés de investir. Saltando alguns passos, o que fez na realidade P até ao momento para reduzir de forma estrutural o enorme desperdício de dinheiro que existe na sua mercearia??? É que parece que das duas uma: ou P espera resolver os seus desequilíbrios aumentando os preços dos seus produtos para os clientes; ou faz uma espécie de chantagem com A e F, contando que estes lhes protejam as costas porque senão também é pior para eles. Dita o bom senso, que fazer chantagem com A e F (mais A), não poderá dar bom resultado no médio prazo. P tem um problema grave de descontrolo de orçamento, e enquanto não resolver isso, não é a despejar dinheiro para cima que se tem a melhor solução.

Nuno Vaz da Silva disse...

Concordo, ainda assim e dado que existe esse grave problema de descontrolo orçamental, não deveria a cooperativa efectuar também diligências para criar mecanismos de incentivos ao cumprimento rigoroso das regras? É que não me parece sustentável ter uma cooperativa quando as mercearias têm incentivos em não cumprir com as regras da boa convivência associativa. A teoria dos jogos ensina-nos o contrário!!
Tenho também pensado muito nos economistas credenciados que há 10 anos atrás defendiam que, com a entrada na moeda única, o déficit da balança de transações comerciais era irrelevante para a sustentabilidade de uma economia.... Se encontrares algum, envia-lhe um abraço amigo e pergunta-lhe se mantém a mesma opinião...

Jose Lapalice disse...

O cumprimento rigoroso das regras depende de cada comerciante. A cooperativa tinha e tem regras. Os 60%, os 3%, etc.... E a cooperativa deu um grande incentivo, que foram os juros baixos (se o comerciante P cumprisse a sua parte) O comerciante P, à semelhança de outros, é que exagerou nas formas de como contornar essas regras (p.ex. desorçamentando). Se o comerciante P só olhou para os incentivos a curto prazo, descurando (ou fiando-se na virgem) o longo prazo, tem de assumir a sua culpa por isso. Já agora, num contexto empresarial, existiriam muitos colaboradores da Mercearia P que deviam estar presos por administração danosa ou roubo. Por exemplo, aqueles que desprezaram de forma vil a agricultura ou as pescas, pois para eles isso eram "actividades menores".

Nuno Vaz da Silva disse...

bem, os 60% eram só para "inglês ver", uma mera declaração de intenções rasgada por quase todos...
Quanto aos 3%, tendo em conta as excepções que se permitiram, passou a ser um limite que perdeu a sua relevância prática.
Mas claro que exagerámos e incumprimos a toda a linha. E concordo que deveria haver responsabilidade politica e eventualmente criminal nos responsáveis por esta gestão danosa na mercearia P.
Só discordo de ti porque o cumprimento dos requisitos impostos pela cooperativa não pode nunca ficar a cargo das respectivas mercearias. É que, dessa forma, se mantêm os incentivos ao incumprimento e nunca mais damos a volta ao problema! Do ponto de vista da auditoria, essa avaliação seria permeável à "maquilhagem"!
O que dizes hoje sobre a agricultura e pescas dirás daqui a 10 anos quando se verificar que a aposta (apenas) na competitividade e o abdicar da coesão foram politicas infrutiferas e que nos deixaram mais pobres e com mais assimetrias por não serem territorialmente sustentáveis...esperemos cá estar nessa altura e lembrarmo-nos do que foi aqui escrito! Espero enganar-me mas (infelizmente) penso que tal não acontecerá!

Jose Lapalice disse...

Se achas que o cumprimento dos requisitos não pode ficar a cargo das mercearias, então se calhar não queres uma cooperativa, mas sim uma empresa com várias filiais. Sabes bem que não existe por parte dos fantoches que estão na direcção da cooperativa muita capacidade e legitimidade para impor o que quer que seja. Quem dita o ritmo são os comerciantes maiores. Eu sei que a coesão é um tema que te é caro. E tens razões para estar preocupado, pois continua-se a nem sequer se falar muito nisso (quanto mais fazer algo para tentar inverter as cada vez maiores assimetrias.

Nuno Vaz da Silva disse...

Não é bem isso. Claro que o cumprimento dos requisitos tem de ficar a cargo de cada mercearia (assim como a penalização pelo incumprimento dos mesmos) mas a avaliação do cumprimento desses requisitos tem de ficar a cargo de uma outra entidade. Por exemplo, não faz qualquer sentido que a validação das contas de uma empresa seja efectuada pela própria estrutura societária. Por algum motivo existem TOCs e ROCs (e mesmo assim, muitas vezes não é suficiente...). A cooperativa não se pode alhear desse controlo/validação sob pena de se verificarem "comportamentos não alinhados" ou mesmo "desviantes". Não se pode "exigir" que, por um lado, um país tenha 3% de deficit e, por outro, se lhe permita efectuar todo o tipo de contabilidade criativa: Moral Hazard!!

Jose Lapalice disse...

Entramos em questões de filosofia de vida. Se eu vejo uma regra, sei que a devo cumprir, mas faço todo o tipo de artificios para a contornar, quando as coisas dão para o torto não posso dizer que a culpa é de toda a sociedade que não fez tudo o que devia para me impedir de prevaricar. A não ser que eu me considere um irresponsável, inimputável que não tem controlo sobre os próprios actos e que admite que precisa de um polícia exterior para o controlar. É isso que achas que é o caminho que o comerciante P deve seguir?? Como tu sabes, os TOCs e ROCs emitem opiniões com base na informação que é disponibilizada pelas empresas. Só isso, já basta para que existam broncas das grandes.

Jose Lapalice disse...

Como tu próprio referiste, um TOC ou ROC não é suficiente para controlar as contas do que quer que seja. A única maneira de (tentar) controlar, é ter duplas assinaturas para autorização de pagamentos e firmar contratos. queres dar esse poder a alguém da "cooperativa"? sabes o que isso significa, não sabes?

Nuno Vaz da Silva disse...

Não quero chegar a tanto mas se há uma moeda única e se a gestão irresponsável de uma mercearia tem externalidades que afectam as outras, não me choca que exista uma entidade supranacional que escrutine as contas. Nem é preciso criar entidades novas. O BCE serve!
Está longe de ser perfeito (basta ver alguns dos seus elementos), mas serve! Não sou a favor do Federalismo e penso que esse não será o caminho a médio prazo mas não podemos confiar apenas nas boas intenções de cada merceeiro. E, como quem não deve também não teme, não vejo nesta medida uma perca potencial de poder nacional que meta medo a alguém.
Achas que, depois desta crise, podemos confiar nos países incumpridores e nas boas intenções dos seus politicos? É que a estrutura de custos destas empresas não é sustentável sem uma "mini revolução" nos procedimentos ou sem uma mudança de mentalidades. E se a primeira é dificil de conseguir, pelos interesses coorporativos instalados, a segunda depende da primeira...
E, uma das regras da boa gestão é o controlo. Apenas me parece que precisamos de dar incentivos para que os países se auto-controlem, nem que seja pela via de escrutinadores externos.

Jose Lapalice disse...

Tendo esclarecido que não queres Federalismo, põe-se a questão da legitimidade do orgão escrutinador. Olhando para o exemplo português, temos à frente do Tribunal de Contas um jurista que foi um péssimo Ministro das Finanças e cuja única coisa abonatória que posso dizer dele é que gosta de BD. Os resultados e consequências do trabalho do Tribunal de Contas são pouco mais do que patéticos, sendo este orgão um mero pró-forma para dar a ilusão de que existe fiscalização do Estado. Sabendo, como tu referiste, que o BCE está longe de ser perfeito (p.ex. tendo em conta alguns dos seus elementos, um deles tristemente bem conhecido de nós) e não é propriamente o orgão mais independente, duvido que a sua actuação viesse a ser muito diferente da do Tribunal de Contas português. Quanto aos incentivos para que os países se auto-controlem, mandaria o bom senso que a perspectiva de expulsão do Euro seria incentivo suficiente para que não se tivessem cometido disparates. Não foi. Concordo contigo sobre que é necessária uma revolução em Portugal (média e não mini) principalmente a nível das mentalidades. Sem alguma mudança de mentalidades, não é possivel mudar procedimentos. Antes do controlo, como medida de boa gestão, eu assinalo o acesso à informação. Que é algo que não existe em Portugal. Se eu te perguntar qual foi o documento assinado com a missão tripartida, tu consegues enviar-me o link para a versão correcta e traduzida na íntegra, p.ex.?? Eu não.

Nuno Vaz da Silva disse...

Eu prefiro a versão inglesa. Pelo menos dessa só encontrei uma versão e não as 2 ou 3 que apareceram na nossa língua materna.
Quanto ao Tribunal de Contas...daquilo que sei, nos últimos anos impediu que fossem gastos alguns milhões, facto que me parece relevante para justificar as vantagens implícitas de ter um órgão escrutinador. Mesmo que não escrutine muito, a sua mera existência já tem alguns efeitos de minimização dos gastos desmesurados. Mais uma vez, não é perfeito e poderia funcionar melhor...mas é melhor do que nada!

Jose Lapalice disse...

Os portugueses não são obrigados a saber inglês. Onde está a tradução completa da versão que foi assinada e pela qual o nosso governo se tem de reger?? A última evidência do poder do tribunal de contas é o folhetim TGV. Tal como está, a capacidade para o Tribunal de Contas fiscalizar os gastos do estado, assemelha-se a um bombeiro combater um incêndio com um regador....roto. Ainda para mais, um bombeiro que tem de andar a pé e quando chega, já ardeu quase tudo. É o que acontece com o TC. Na maioria das vezes quando opina, é muito à posteriori, quando as derrapagens já ocorreram há anos :(

Nuno Vaz da Silva disse...

Vou ver se te encontro isso numa versão on-line e de acesso simples...não quero que te falte nada! :)
Lá nisso tens razão. Mas não tenho a certeza de que as fiscalizações preventivas sejam mais eficientes. Caso existam temos outros problemas: atrasos nos pareceres, excesso de burocracia, bloqueio politico a determinados investimentos, anos de espera para conseguir vistos...
Mas neste caso também havia solução (como em quase tudo na vida): Penso que 1 mês para decisão é mais do que suficiente. Caso o TC não cumprisse esse prazo, significava que o projecto estava aprovado!

Jose Lapalice disse...

Desejo-te sorte nessa pesquisa. Já tentei e desisti. Se não há um controlo antes das despesas serem contratualizadas e pagas, o papel do TC resume-se a elencar o que correu mal e a dizer: "ai ai ai, os senhores portaram-se muito mal aqui com as contas disto. Que não se repita, sff". É isto que tem ocorrido. Não concordo com a tua ideia de aprovações tácitas por ausência de parecer no espaço de 1 mês. Essa é uma sugestão demasiado fácil de aldrabar/contornar. Por ambas as partes, diga-se. O TC pode sempre alegar que lhe faltam documentos para analisar e pedir extensão de prazos. Isso não é solução. Têm de haver mais mecanismos de controlo das despesas (p.ex. pela existência de "controllers"). E para treinar, convém começar pelo mais simples: juntas de freguesia ou aqueles institutos e fundações da treta. Depois pensar em como controlar uma Câmara Municipal. Depois um Governo Regional. Até chegar aos Ministérios. Actualmente, praticamente cada um destes (à excepção talvez das juntas de freguesia) faz o que lhe dá na bolha no que à despesa diz respeito.

Nuno Vaz da Silva disse...

Controllers....um exemplo interessante! Não tinha sido constituida uma equipa de controllers para avaliação das contas públicas ainda durante o mandato do Primeiro Ministro Socrates e que incluia reputados e académicos economistas? Será que terão feito um trabalho proveitoso?
Nenhum método é perfeito para um país de criativos.
Faço é votos que se corte a sério na despesa pública e que o Estado faça uma lipoaspiração às gorduras. O aumento de impostos não é sustentável até ao infinito e o Estado tem de se centrar nas actividades efectivamente públicas: Segurança, Justiça, Educação, Apoio Social, Saúde.
Tudo o resto deve ser revisto e devemos colocar um travão às empresas municipais e institutos sem actividade mas com corpos sociais de remunerações escandalosas. Temos de acabar com a acumulação de reformas pornográficas e avaliar a actividade das fundações que se difundiram como forma de enriquecimento paralelo e sem taxação fiscal!

Jose Lapalice disse...

Sim, sim e mais sim. Concordo com o que escreveste.

Quando refiro controllers, penso em verdadeiros técnicos com experiência em auditoria e controlo financeiro. E não os habituais pajens académicos que se calhar nem sabem qual o circuito de elaborar uma factura, quanto mais trabalhar em Excel.

Nuno Vaz da Silva disse...

e digo mais, enquanto passamos a vida a falar em Eurobonds e agencias de rating, perdemos precioso tempo que deveria ser utilizar a repensar o Estado como entidade necessária à vivência em sociedade mas sem ser uma enorme esponja que tudo absorve mas que apenas alguns a conseguem espremer.
Agora arranjámos outro fait-diver....os impostos sobre os ricos que, mais uma vez não apanhará os efectivamente ricos mas sim a classe média. E enquanto isso, passam os dias, os meses e os anos e continuamos a maquilhar os problemas e não resolvemos. Sabias por exemplo que até Timor Leste já tem um site na net onde publicita onde é que o Estado gasta os fundos públicos (www.transparency.gov.tl)? Não ficaria mal seguirmos o exemplo de tão jovem nação...

Jose Lapalice disse...

Com papas e bolos se entretêm os tolos. Já se apagou o fogacho da TSU, agora é mais um mês de entretém com "imposto sobre os ricos", e por aí a fora. Sintomática foi a última declaração do Louçã Gaspar, onde ao invés de dizer onde ia cortar despesa, anunciou aumento de impostos.

Não sabia isso de Timor Leste. Por cá, o melhor que eu sei para ver onde o estado gasta algum do nosso dinheiro é este: http://madespesapublica.blogspot.com/2011/08/presidente-do-inatel-pagou-para-ser.html. Que se baseia na análise deste site: http://www.base.gov.pt . Só que por exemplo, fazendo uma pesquisa sobre o Inatel, deparo-me com informação de um contrato de 5000 Eur com o Rogério Samora. Informação adicional: nicles.

Nuno Vaz da Silva disse...

Mas como tu és uma pessoa que gosta de estar bem informada, deixo-te aqui um outro site de que vais certamente gostar:
http://transparencia-pt.org/

Jose Lapalice disse...

Já guardei nos favoritos. Não conhecia. Obrigado e obrigado também a quem fez o site. Falta é dá-lo a conhecer.