A crise do Euro é talvez a questão económica mais importante neste momento e por isso foi o tópico que escolhi para este artigo. Apesar de ser um assunto muito debatido, acho que a discussão nem sempre tem sido a melhor, pois tem sido demasiado colorida por simpatias partidárias e sobretudo orgulhos nacionais. A meu ver, os factos devem ser a base da discussão. Afinal, sabiamente, é costume dizer-se que contra factos não há argumentos. Comecemos portanto por ver se as opiniões frequentemente emitidas sobre esta questão são suportadas pelos factos ou se não serão antes mitos com pouco fundamento.
A opinião generalizada sobre a crise do Euro é de que os países da periferia (Espanha, Grécia, Irlanda, Itália e Portugal) que neste momento encontram dificuldades sérias do financiamento da sua dívida pública caíram nessa situação por terem durante anos abusado do seu estatuto de membros do Euro para financiarem grandes aumentos de gastos públicos à custa do virtuosismo dos países do centro (Alemanha, França e Holanda, entre outros). Mas será tal verdade? Olhemos para a evolução da divida de vários países na tabela em baixo.
Tabela 1: Dívida Pública em percentagem do produto
Podemos ver que no período após a adesão ao Euro em 1999 (2001 no caso da Grécia) e 2007 (anterior à Grande Recessão) apenas três membros da zona euro aumentaram a divída: Alemanha, França e Portugal (neste grupo de “infractores” talvez devamos também incluir a Grécia que recorreu a truques financeiros para esconder a verdadeira dimensão da sua divída). Entre os países virtuosos que reduziram a sua dívida de forma muito significativa temos Espanha, Holanda, Irlanda e Itália. O grande crescimento na dívida pública em Espanha, Grécia, Irlanda, Itália, e Portugal só ocorre após 2008. Ou seja o aumento significativo da dívida pública nestes países é consequência da Grande Recessão (a despesa dos estados aumenta devido à necessidade de pagar subsídios de desemprego entre outras despesas sociais e as receitas caem pois as empresas geram menos lucros) e não o resultado de um comportamento imoral dos países da periferia. A imagem generalizada de imoralidade dos países da periferia (é sintomático que os media se referem a estes países como PIIGS) e virtuosismo dos países do centro não corresponde portanto ao que na realidade ocorreu.
Para aqueles que pensam que o problema das finanças públicas dos países da periferia foi agravado por serem membros do Euro comparemos o que se passou nesses países com o que aconteceu na Islândia e Reino Unido (que não pertencem ao Euro) após a Grande Recessão. Entre 2007 e 2010 a dívida da Grécia aumentou de 106% do PIB para 148%. No entanto, no mesmo período a dívida da Islândia aumentou de 23% do PIB para 81%. Em Portugal aumentou de 67% para 88% e o Reino Unido de 43% para 86%. Perante estes factos parece-me dificil de argumentar que as financas públicas dos países da periferia seriam melhores caso nao estivessem no Euro.
Outra opinião que tem sido difundida é que a adopção do Euro levou a uma expansão desmesurada do crédito nos países da periferia do Euro resultando em bolhas especulativas nos mercados de habitação desses países (e exarcebando os efeitos da Grande Recessão para a periferia). O gráfico em baixo (Figura 1) permite-nos examinar até que ponto tal é verdade (infelizmente o índice não tem dados disponíveis para Grécia, Islândia ou Portugal).
O gráfico claramente demonstra que em finais do século XX e inícios do século XXI houve um aumento significativo dos preços da habitação em todos os países considerados (com excepção da Alemanha) seguido de uma queda após a Grande Recessão. Mas o padrão é o mesmo para os países da periferia como Espanha e Irlanda e para países do centro como França e Holanda. O padrão também é o mesmo nos países que não são membros do Euro (EUA, Reino Unido e Nova Zelândia). Fará sentido culpar o Euro pelo aumento dos preços da habitação em Espanha e Irlanda? Se sim, porque não culpar o dólar ou a libra por o mesmo ter ocorrido nos EUA e Reino Unido?
Outra explicação comum para a grave situção de hoje dos países da periferia é de que estes perderam competitividade em relação ao centro devido a produtividade do trabalho na periferia não ter crescido tanto como os salários. A figura 2 (em baixo) mostra a evolução dos custos de trabalho em diversos países. Podemos ver claramente que os países da periferia perderam competitividade em relação à Alemanha que manteve os seus custos laborais praticamente constantes desde a adopção do Euro. No entanto podemos ver que a evolução dos custos laborais na periferia foi bastante semelhante à de outros países do centro como França e Holanda e à de países que não fazem parte do Euro como EUA, Reino Unido e Islândia. Curiosamente a Islândia foi o país que mais competitividade perdeu em relação à Alemanha desde 1999. Perante estes factos é difícil ver a adopção do Euro como a causa da perda de competitividade para a Alemanha ou dos actuais problemas que a periferia enfrenta.
Já vimos que a imagem de comportamento imoral dos governos da periferia não passa de um mito (que infelizmente tem contribuído para que as populações dos países do centro pensem que os habitantes da periferia não merecem solidariedade por parte dos seus governos). Mas e a imagem de que o Euro é uma instituição que benefeciou sobretudo os países do centro? Para responder esta questão olhemos para a tabela 2 que mostra as taxas de crescimento médias antes e após a criação do Euro em 1999 (é de notar que os números para a Grécia são semelhantes se considerássemos antes os períodos entre 1992-2000 e 2001-2007).
Podemos ver que até à Grande Recessão apenas três dos membros do Euro cresceram menos do que antes da adopção do Euro (Holanda, Irlanda e Portugal) mas que a generalidade (Alemanha, Espanha, França, Grécia e Itália) cresceu mais. Terá sido isto devido simplesmente aos anos após a adopção do Euro terem sido melhores para a economia mundial? Aparentemente não, pois no mesmo período o Reino Unido cresceu a um ritmo ligeiramente inferior e os EUA a um ritmo significativamente inferior. O bom desempenho relativo do centro em relação à periferia só ocorre após a Grande Recessão. Será o Euro responsável por esta diferença? Também aqui penso que os factos desmentem esta ideia. Entre os países que mais sofreram desde o inicío da Grande Recessão encontramos membros da periferia do Euro como a Grécia e Irlanda mas encontramos também a Islândia que não pertence ao Euro. Entre outros países que sofreram significativamente com a Grande Recessão encontramos membros da periferia do Euro como Espanha, Itália e Portugal mas também o Reino Unido que possui a sua própria moeda. Por isso também parece-me ser um mito considerar que o Euro benefeciou mais o centro do que a periferia ou que o Euro tem sido um dos principais factores pela grave crise económica que afecta os países da periferia nestes anos recentes (infelizmente este mito tem contribuído para um sentimento de grande antagonismo dos cidadãos da periferia para com os países do centro).
João Madeira
Universidade de Exeter
Referências:
Os dados para as tabelas 1, 2 e figura 2 podem ser obtidos no website da OCDE: http://stats.oecd.org/
Os dados da figura 1 podem ser obtidos do website do FRB Dallas:
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