Nos meus textos anteriores vimos que o Euro não parece
ser a causa dos problemas que vários países europeus enfrentam correntemente. Senão
o Euro onde está a origem? A causa tem de ser comum não só aos países da
periferia do Euro como também aos outros países que têm sido significativamente
afectados pela Grande Recessão. Os factores que conduziram à Grande Recessão
são vários e complexos (confesso que não compreendo bem muito do que aconteceu
– se fosse óbvio então governos, instituições internacionais, reguladores,
economistas ou investidores, entre outros agentes, teriam tomado medidas que
prevenissem o problema). A meu ver a explicação parece estar por detrás da
desregulação do sector financeiro e liberalização dos movimentos de capitais. O
trabalho de Reinhart e Rogoff (2008) mostra evidência empírica de que estes
factores estão tipicamente associados a crises financeiras.
A liberalização de movimentos de capitais após o tratado
de Maastricht, que se tornou efectivo em 1993, levou a um grande movimento de
capitais dos países que constituem hoje o centro da zona Euro para os países da
periferia do Euro (e outros países, como a Islândia que também faz parte do
Espaço Económico Europeu), onde por terem sistemas financeiros menos
desenvolvidos seria possível obter melhores rendimentos. Isto explica os
grandes excedentes da balança de transacções correntes dos países do centro do
Euro (como Alemanha e Holanda) e os défices dos países da periferia do Euro e
Islândia (onde a desregulação do sector financeiro em 2001 terá contribuído
muito para o exarcebar da situação). Muitos atribuem ao Euro o principal papel
por detrás dos défices da periferia devido a estes terem perdido
competitividade em relação à Alemanha sem terem à sua disponibilidade uma moeda
própria que corrigisse o desequilíbrio. Parece-me pouco provável que tivesse
sido esse o caso pois a Holanda também perdeu competitividade em relação à
Alemanha e teve excedentes comerciais e a Islândia, que não é membro do Euro,
foi de longe o país que teve o maior défice comercial neste período (também a
Polónia teve elevados défices neste período sem ser membro do Euro, o mesmo se
pode dizer da Eslováquia que só aderiu em 2009 ou da Estónia que apenas aderiu
em 2011). A investigação feita até agora em economia, não encontrou uma relação
empírica forte e robusta entre desequilibríos de taxas de câmbio e os défices
comerciais (veja-se por exemplo os trabalhos de: Auboin e Ruta, 2012; Huchet-Bourdon
e Korinek, 2011 ou Chinn e Wei, 2012).
Os países com grandes centros financeiros, como o Reino
Unido e principalmente os EUA, também tiveram grandes défices comerciais em
finais dos anos 90 e inícios do século XXI. Neste caso a entrada de capitais
tinha como principal origem os países do leste da Ásia (sobretudo China) e
também do médio oriente (onde preços de petróleo elevados permitiram poupanças
elevadas). As taxas de poupança excessivamente elevadas nesses países (o estudo
de Wei e Zhang, 2011, sugere o desequilíbrio do rácio entre sexos de jovens
adultos como um dos factores que explica as taxas de poupança muito elevadas na
China) não encontram oportunidades de investimento adequadas nos seus mercados
financeiros muito pouco desenvolvidos e por isso fluíram para mercados
financeiros muito sofisticados como o dos Estados Unidos (para o que também
terá contribuído, a política cambial da China, de manter um valor reduzido da
sua moeda, de forma a favorecer as suas exportações).
O estudo de Ito e Chinn (2007) confirma empiricamente
este fenómeno um pouco estranho - enquanto em economias industrializadas (como
as europeias) o crescimento do sector financeiro leva aumentos do défice da balança
de transacções correntes, o oposto se verifica em economias em desenvolvimento.
Em teoria a liberalização de movimentos de capitais é
algo.de positivo pois permite a alocalização do capital onde este é mais
eficiente. A minha especulação para a associação entre liberalização de
movimentos de capitais e crises financeira é a seguinte. Inicialmente o capital
flui para os países onde pode obter maiores retornos, no entanto quando as
melhores oportunidades de investimento se esgotam a direcção dos movimentos de
capitais mantêm-se. A razão para isso pode ser por os detentores dos capitais
não se importarem do sector financeiro os direccionarem para projectos de valor
duvidoso pois confiam que em caso de necessidade o governo intervirá para
salvar da falência essas instituições financeiras (ou seja o sector financeiro
benefecia de um subsídio implícito à sua actividade). Os agentes dos bancos têm
incentivo para fazerem empréstimos mesmo quando os projectos são duvidosos pois
estes só se revelarão como tal no médio ou longo prazo (entretanto os agentes
já receberão bónus referentes a concretização desses mesmo negócios). Os
clientes que recebem os empréstimos dos bancos também têm incentivo a fazer o
investmento mesmo quando se trata de um projecto de valor duvidoso pois caso
este se prove de facto negativo não terão de pagar o empréstimo na totalidade.
Isto explica o porquê de se ter visto em tantos países elevados montantes de
capital investidos no mercado da habitação. Enquanto a oferta não se ajusta à
procura (demora tempo para construir novas habitações e obter licenças para as
fazer) os preços crescem e permitem o retorno do investimento. Quando a oferta
se ajusta à procura (ou a excede) os preços das habitações caem e os
investidores sofrem perdas. Após isto a entrada de capitais reverte-se e o país
sofre uma contração brusca da disponibilidade do crédito e entra em recessão
(sem crédito é difícil para as empresas desenvolverem novos projectos ou
expandirem os que já existem). As finanças públicas também são afectadas de
forma muito negativa devido aos resgates do sector financeiro mas sobretudo
(veja-se de novo o trabalho de Reinhart e Rogoff, 2008) perda de receitas (pois
empresas em dificuldades não pagam impostos) e aumentos de custos em despesas
sociais (como subsídios de desemprego). Os países com excedentes comerciais
também são afectados de forma negativa (mas de forma menos extrema) pois os
seus bancos veêm uma redução do valor dos seus activos no exterior (bancos de
França e Alemanha sofreram perdas elevadas no mercado de hipotecas subprime dos
EUA e têm também grande exposição à dívida grega) e devido à redução da procura
externa dos seus produtos.
A figura 1 em cima mostra a taxa de crescimento de empréstimos bancários para vários países do Euro. Pode-se ver como a contração do crédito foi particularmente brusca na Irlanda (o que explica o porquê da Irlanda ter sido tão afectada pela Grande Recessão apesar de até ter um ambiente económico bastante favorável) e Grécia.
Não foi só o sector privado que viu o seu acesso ao
crédito afectado. Inicialmente os governos não foram afectados mas em 2010 a
Grécia viu a sua taxa de juro subir muito significativamente. Em 2011 Portugal
e Irlanda também viram o seu custos de acesso ao crédito subirem de forma muito
significativa. Podemos ver isto na figura 2 em baixo que nos mostra a evolução
das taxas de juro de longo prazo para vários países. Podemos ver que durante o
período de abundância de capital os países da periferia viram as suas taxas de
juro descerem muito significativamente (o diferencial que antes existia para os
países do centro praticamente desapareceu). Com a Grande Recessão e a reversão
dos movimentos de capitais o diferencial de taxas de juro entre a periferia e o
centro resurgiu. Aqui penso que de facto o Euro teve um papel importante na
gravidade da crise. Os únicos países que viram as suas taxas de juro aumentarem
de forma tão significativa foram os países da periferia do Euro (podemos ver
por exemplo que tanto EUA, Reino Unido e Islândia não foram afectados da mesma
forma). De Grauwe (2011) explica que uma das razões para isto ter acontecido é
que por não terem controle da moeda em que a sua dívida é emitida, os países
que fazem parte de uma união monetária são mais vulneráveis a profecias que se
autocumpram (por terem receios de incumprimento da dívida os credores exigem
pagamentos de juros mais elevados e isso leva à realização dos seus receios).
De Grauwe (2012) mostra evidência de que uma profecia autocumprida por parte
dos mercados parece estar por detrás de uma parte importante deste aumento dos
custos de financiamento dos países da periferia do Euro.
Figura 2: Taxas de juro de long prazo em percentagem
anual
João Madeira
Universidade de Exeter
Referências:
Os dados da figura 1 podem ser obtidos do website do BCE:
Auboin,
Marc & Ruta, Michele (2012). "The Relationship between Exchange Rates
and International Trade: A Literature Review," CESifo Working Paper Series
3868.
Chinn,
Menzie & Wei, S.J. (2012). “A faith-based initiative meets the evidence:
Does a more flexible exchange rate facilitate current account adjustment?”
Review of Economics and Statistics.
De Grauwe,
Paul (2011). “The Governance of a Fragile Eurozone.”
De Grauwe, Paul & Ji, Yuemei (2012). “Mispricing of Sovereign Risk and
Multiple Equilibria in the Eurozone,” mimeo, Jan 2012
Huchet-Bourdon,
Marilyne & Korinek, Jane (2011). "To What Extent Do Exchange Rates and
their Volatility Affect Trade?," OECD Trade Policy Working Papers 119.
Ito,
Hiro & Chinn, Menzie (2007). "East Asia and Global Imbalances: Saving,
Investment, and Financial Development," NBER Working Papers 13364.
Reinhart,
Carmen M. & Rogoff, Kenneth S. (2008). "Banking Crises: An Equal
Opportunity Menace," NBER Working Papers 14587.
Wei,
Shang-Jin & Zhang, Xiaobo (2011). "The Competitive Saving Motive:
Evidence from Rising Sex Ratios and Savings Rates in China," Journal of
Political Economy, vol. 119(3), pages 511 - 564.
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