domingo, 21 de outubro de 2012

Recursos Humanos ao serviço do Estado: Napoleao versus Hamilton



Muitas vezes falamos de melhorar a administraçao pública e de como um Estado mais eficiente poderia servir melhor o público e o país. Um dos grandes problemas que se aponta à Administraçao Pública é a sua dificuldade em atrair os melhores profissionais e atingir uma gestao de topo. Em Portugal existe uma reputaçao dos empregos na Administraçao Pública servirem mais objetivos políticos que uma provisao eficiente de serviços capazes. Este fenómeno até aparece estudado formalmente por um dos actuais secretários de Estado, Pedro Martins, que encontrou evidencia empírica de que os empregos no sector público aumentam consideravelmente nos meses anteriores e posteriores às eleiçoes.

Nao quero aqui fazer nenhuma análise do sector público em Portugal ou da sua eficiencia, mas ocorreu-me que realmente por vezes a capacidade de nomear as pessoas mais competentes e expulsar o pessoal menos eficiente tem um impacto enorme. Exemplos claros disso ocorreram justamente a seguir à Revoluçao Americana de 1776 e à Revoluçao Francesa de 1792. Nas colónias americanas os administradores eram nomeados pela sua lealdade à coroa e por seu berço de nobreza inglesa, nao pelo seu conhecimento da economia americana ou interesse no bem estar dos colonos. Na França feudalista praticamente todas as posiçoes de topo na Administraçao e Exército se deviam ao berço dos candidatos e à capacidade das famílias comprarem (literalmente) os cargos de gestao públicos. Em ambas as sociedades os gestores públicos nao eram seleccionados com base em critérios de competencia, mas sim políticos e hereditários. Creio ser fácil imaginar o grau de ineficiencia e incompetencia que grassava na gestao pública dessas sociedades.

Ambas as Revoluçoes tiveram um efeito tremendo na melhoria da Administraçao Pública em ambos os países, uma vez que permitiram aos trabalhadores mais competentes literalmente tomar conta da nova administraçao. Napoleao foi um génio militar e político. Numa situaçao em que o Estado estava falido e o Exército mal equipado e desmoralizado, Napoleao conseguiu vencer os exércitos italianos e austríacos em 1796. Depois de tomar o poder, Napoleao promoveu uma meritocracia extremamente eficiente nas Forças Armadas, ascendendo soldados pouco ilustres às mais altas posiçoes. Isto é algo pouco conhecido, mas o primeiro negro a subir à condiçao de general em França, Alexandre Dumas (pai e avo dos célebres escritores franceses), surgiu durante o governo napoleónico. Dumas é até os dias de hoje o oficial negro de mais alta patente na história da Europa. Ou seja, Napoleao promoveu maior competencia militar e neutralidade racial no seu exército que qualquer estadista antes ou depois dele! Ao fim de alguns anos, apesar da França falida, Napoleao rapidamente se apercebeu que tinha o exército melhor gerido da Europa e dominou todas as potencias continentais até à Rússia, algo que nunca nenhum líder militar antes ou depois dele conseguiu. Os franceses da monarquia mal conseguiam chegar ao Reno, quanto mais a Moscovo.

Napoleao teve outros exitos assinaláveis, como a elaboraçao do Código Civil (um dos sistemas de leis mais influentes a nível internacional) e a promoçao da ciencia (como a estandidazaçao de medidas com o sistema métrico e a utilizaçao de comida enlatada pelo exército, duas inovaçoes de enorme impacto até aos dias de hoje). Infelizmente para os Franceses, Napoleao era um militar demasiado obcecado. Em vez de capitalizar a paz depois de Austerlitz, Napoleao iniciou conflictos com todas as potencias europeias, incluindo a Inglaterra. Os ingleses – tal como outros países – também tinham muitos incompetentes na Marinha e Exército, mas estiveram a tempo de mudar e promover os mais competentes. Militares como Nelson, Cochrane, e Wellington acabariam por derrotar a eficiente máquina napoleónica. A desgraça da França foi a ambiçao napoleónica ter custado centenas de milhares de vidas.

Nos EUA a nova administraçao pública também provou ser mais capaz que os seus antecessores feudais. Por fortúnio americano, estes beneficiaram nao de um génio militar, mas de um grande gestor financeiro, Alexander Hamilton. Como o primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, Hamilton defendeu a liberdade de iniciativa empresarial e a livre competiçao. Também criou a primeira Casa da Moeda americana, o antecessor do actual Fed, e lançou impostos federais e uma dívida americana nacional. É de observar que nenhuma destas medidas eram óbvias para a altura. Thomas Jefferson era mais a favor de uma política económica do estilo françes em que o Estado iria directamente favorecer as indústrias e empresários que pareciam melhores para o Governo. Hoje nos cursos de Economia aprendemos que estas politicas industriais podem ser desastrosas, mas nos tempos de Hamilton imperava o mercantilismo e dirigismo industrial, nao a livre empresa. Também havia muitos políticos americanos que insistiam na adopçao de tarifas comerciais monstruosas com Inglaterra, algo que Hamilton recusou porque iria prejudicar os industriais e comerciantes americanos.

Hamilton também insistiu que criar uma moeda americana única, o dólar, iria promover o comércio doméstico e internacional do novo país. Ademais, a existencia de impostos federais e de uma dívida nacioanl iria permitir aos EUA financiar-se com juros mais baixos (uma vez que a dívida dos EUA iria ser mais credivel que a dívida de cada país individual). Estas eram medidas fiscais muito impopulares para a altura, mas que se revelaram chave no sucesso americano do século 19. Os conselheiros de Washington eram mais favoráveis à autonomia de cada Estado e que cada ex-colónia se safasse por si, pagando as suas dívidas ou declarando default.

Portanto, de certa forma Hamilton antecipou a discussao feita em torno do Euro em 1999 e a questao actual sobre mecanismos financeiros que permitam à Europa dar liquidez e auxílio a crises financeiras de cada país europeu, como os ESBIES.

Realmente, os EUA tiveram mais sorte. O génio militar de Napoleao ao final trouxe muitas desgraças. A visao financeira de Hamilton sofreu na altura muitos protestos de políticos que nao queriam salvar os Estados em crise financeira ou daqueles que queriam favorecer os “melhores empresários” (do ponto de vista deles, claro). Mas ao final o liberalismo económico, a moeda única americana, e o seu sistema fiscal solidário a nível federal garantiram aos EUA crescimento e prosperidade económica para todo o futuro.

Carlos Madeira
Economista do Banco Central do Chile
O artigo reflecta meramente a opiniao pessoal do seu autor.

3 comentários:

Paulo Santos Monteiro disse...

Muito bom post Carlos!

Nuno Vaz da Silva disse...

Carlos, excelente artigo. Resta-nos saber se em Portugal teremos um Napoleão. Já em relação à Europa, as diferenças culturais e históricas dos países dificultarão o crescente processo de unificação que poderia resolver muitos dos problemas vigentes! Não creio que seja possível termos uma espécie de Estados Unidos da Europa. Aliás, acredito até que a geografia de alguns países pode ter algumas alterações, veja-se por exemplo as pressões separatistas em Espanha!

Pedro Antunes disse...

Não querias dizer um Hamilton, Nuno?

Uma federação de estados europeus já começa a ser uma realidade. Vai acontecer, o processo pode até estar a acelerar. Mas como na história dos EUA, só quando se tornar um facto consumado é que nos vamos aperceber disso! E então será apenas uma questão de acertar formalidades.