terça-feira, 16 de outubro de 2012

Um exemplo de reforma para o sistema nacional de saúde



Li ontem o relatorio OCDE que avalia os sistemas de saúde e resultados para os paises membros. O Chile só se tornou membro da OCDE há dois anos, logo pensei que esta era uma boa oportunidade para comparar os dois sistemas de saúde, o portugues e chileno.
O sistema chileno é interessante pela sua originalidade em ser dos poucos sistemas de saúde baseados em hospitais e seguros privados, mas em que 100% da populaçao tem um seguro de saúde e por isso acesso a cuidados de saúde altamente subsidiados. É obrigatorio que todos tenham um seguro de saúde, para o qual se desconta 7% do salario (mas com um tecto de valor máximo para quem ganha muito) e para quem nao tem emprego o Estado paga o seguro. Existem mais ou menos 10 seguradoras privadas e 1 seguradora pública, mas qualquer pessoa pode escolher uma delas. As seguradoras tem beneficios diferentes (por exemplo, umas comparticipam 40% do custo das visitas ao médico e 70% dos custos de laboratorio, outras pagam 70% aos médicos e só 30% dos laboratorios, etc.), mas sao reguladas: por exemplo, o Estado obriga a que uma lista de "doencas catastroficas" tem de ser seguradas em pelo menos 90%.

Os hospitais e clinicas também sao uma mistura entre privado e público, mas sao independentes das seguradoras. As seguradoras pressionam as clínicas e hospitais para que sejam cada vez melhores. Porque? Porque nenhuma seguradora quer dizer aos seus clientes "comparticipamos 70% das clinicas más, mas só 30% nas clinicas boas".

Eu queria ver se este sistema era pior ou melhor que o portugues e retirei duas conclusoes.

1) O sistema portugues nao é mau. No relatorio OCDE em termos de desempenho (qualidade da saude dos portugueses, esperanca de vida, etc) curiosamente Portugal está exactamente no meio de paises com um gasto em saúde similar a Portugal e com um PIB per capita similar. Ou seja, nao podemos dizer que o sistema portugues é excelente, mas também nao parece mau.

2) O sistema chileno parece ser dos mais eficientes do mundo. Tem os mesmos resultados de esperança de vida que países como Portugal, Grecia, ou Republica Checa, mas com muito menos gastos: só 1/3 da despesa per capita, metade dos médicos por 1000 habitantes desses paises, metade do número de clínicas e gastos em equipamentos. E isto num país onde uma parte significativa da populaçao trabalha em minas ou na agricultura, logo tem piores condicoes de trabalho. Já estive em minas e é um pouco como respirar pó de ferro constantemente pelas narinas. Aliás, o Chile em 1980 tinha 15 anos a menos de esperança de vida que Portugal, mas depois de privatizar a saúde passou a ter a mesma esperança de vida.

É de chamar a atençao que nao penso que o sistema de saúde português seja mau. Portugal tem um sistema com um desempenho razoável e alterar-lo pode ter vantagens e desvantagens que seria necessário estimar. O sistema chileno nao é perfeito. Os hospitais e seguradoras privadas parecem ser eficientes a gastar o dinheiro deles, mas revelam taxas de rentabilidade de 25% a 30%, o que parece longe dum mercado perfeitamente competitivo. Outro problema é que apesar do Chile ser melhor que Portugal em vários tipos de doença como o cancro, também faz pior em outras áreas, tal como na mortalidade infantil e na mortalidade de ataques cardíacos adultos. 

Penso que os dois problemas do sistema de saúde em Portugal se resumem a: 1) confunde-se saúde com caridade (nao é a funcao dos médicos resolverem os problemas sociais das familias, isso é para os assistente sociais); 2) como o Estado é o empregador, confunde-se servico público com emprego público e o Estado tem a obrigacao de gastar dinheiro em médicos desnecessarios, mais regalias laborais, equipamentos e edificios desnecessarios, uma vez que nao sao os médicos e doentes a pagar esses custos. Assim, os administradores dos sistemas de saúde tem incentivos perversos para gastar demasiado (isso cria-lhes prestigio junto dos seus trabalhadores), serem pouco rigorosos nos horários de trabalho (podem simplesmente pedir mais pessoal), e pouco eficientes em gerir recursos caros de todo o tipo. Por exemplo, os hospitais chilenos só tem 10% dos médicos de famílias de Portugal ou de França, mas têm mais especialistas. De esta forma, o Chile poupa neste custo duplo que é a pessoa ir ao médico geral e depois marcar a especialidade. Outra forma de poupar custos é que as clinicas sao criadas onde é eficiente servir a populacao e nao onde se tem de criar empregos para médicos.

Onde o sistema chileno poupa mais em relacao a Portugal é em 4 coisas simples: 1) só tem 10% dos médicos de familia de Portugal ou de França (as pessoas escolhem a especialidade que necessitam logo a seguir a falar com a secretaria ou operadora telefónica); 2) o Chile só tem 20% das enfermeiras de Portugal (os hospitais chegaram a conclusao que as enfermeiras em muitos casos só servem para fazer coisas triviais que os proprios médicos podem fazer); 3) existe sempre uma co-participacao pequena (nem que seja só 2-3 euros), o que impede que as pessoas solitarias usem o sistema de saúde para coisas que nao o seu propósito; 4) existe criminalizacao de abusos do sistema de saúde (como pessoas que abandonam os familiares idosos ou criancas no hospital).

Estes elementos nao tem o objetivo de limitar a atencao aos ricos, mas sim uma questao de eficiencia. As estatisticas mostram que curiosamente no Chile todos os municipios tem o mesmo gasto per capita em saúde (ou seja, aqui o equivalente a Cascais ou a Amadora gastam o mesmo com a saúde dos seus residentes). O elemento 4) é para prevenir abusos do sistema, seja por pessoas solitarias ou familiares de pessoas inconvenientes mas com saúde. Esse tipo de coisa é algo melhor tratado por outros sistemas de apoio social. O uso de médicos e enfermeiras para fins sociais é muito caro, porque os médicos sao pessoas de alta educacao (tem o equivalente a licenciatura, mestrado e estágio) e as enfermeiras também tem pelo menos o liceu e uma formacao especial ou licenciatura. Mas as pessoas que atendem nos lares ou na assistencia social em geral podem ter apenas a quarta classe ou o liceu, podem ser trabalhadoras a tempo parcial, ou mesmo reformados mais jovens e de melhor saúde que decidem fazer voluntariado. Ou seja, num sistema como o portugues 100% gratuito, as pessoas meramente solitarias ou inconvenientes podem usar ineficientemente o tempo de médicos que ganham 5 vezes mais o salario dos trabalhadores sociais.

Carlos Madeira
Economista do Banco Central do Chile
O artigo reflecta meramente a opiniao pessoal do seu autor.

3 comentários:

Pedro Antunes disse...

Carlos, fizeste um estudo formal? Seria interessante ver, especialmente para proponentes deste tipo de envolvimento de privados na saúde. O que mais me interessa, para além da eficiência operacional que descreves, é também qual o suporte adicional que a sociedade dá, que em Portugal seja dada pelo estado.

Carlos Madeira disse...

Nao tenho estudos formais, nem entendo demasiado de saúde pública.

Ademais, é possivel que existem diversas desvantagens no sistema chileno que nao me tenha apercebido.

Competicao insuficiente, mortalidade infantil mais alta que Portugal, mortalidade mais alta em ataques cardíacos, sao pelo menos 3 coisas que vi no relatorio OCDE.

Carlos Madeira disse...

Agora recordo-me. Estes foram alguns dos trabalhos formais que li antes de escrever o artigo, mas nenhum compara formalmente o sector de saúde chileno e o portugues. Aliás, a maioria dos relatorios sao negativos para o sistema chileno, porque os chilenos sao habitualmente negativos sobre os seus sistemas e estao sempre a olhar para coisas que podem fazer melhor

http://pwt.econ.upenn.edu/php_site/pwt71/pwt71_retrieve.php

http://www.eclac.cl/publicaciones/xml/1/20101/titelman.pdf

http://voices.yahoo.com/how-health-coverage-provided-chile-4571317.html

http://www.paho.org/English/HDP/HDD/20Fran.pdf

http://www.oecd.org/health/healthpoliciesanddata/49105858.pdf

http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/BriefingNotePORTUGAL2012.pdf

http://www.oecd.org/els/healthpoliciesanddata/BriefingNoteCHILE2012.pdf